Reliquia

on terça-feira, 16 de junho de 2009

Não tinha pista, era um tal de carago, depois virou estrada de areia vermelha, o que já era um grande avanço, porque um pouco antes do carago, era só areia, areia de atolar qualquer carro, menos o jipe que concorria a preferência popular com a velha rural. Juntos eram o principal meio de transporte, no caso do jipe este era famoso por ter tração nas quatro rodas, aliás, juntos eles eram os principais veículos da época, porque o principal meio de transporte nesta época, era mesmo a boa e velha mula, mas voltando a questão, esta era minha cidade, Grossos, por volta do ano de 1970.

Nessa época, a igreja católica tinha uma calçada que atravessava quase toda a rua principal, o espaço trafegável era apenas o lado junto ao correio, onde no ano de 1977, o glorioso Raimundo Pereira, prefeito deste ano, mandou cortá-la ao meio para fazer a estrada de areia vermelha e um ano depois, em meados de 1978 mandou passar o asfalto, criando assim, a mão dupla, o que é hoje, antes nessa parte da cidade, devido à calçada, só havia um lado da rua.

O prefeito do ano de 1970, já passou para o outro plano, era o saudoso José Fausto de Souza, onde tinha acabado de tomar posse, este governou Grossos somente por três anos devido às eleições gerais, após seu mandato, tomou conta da farmácia de seu pai, esta ficava em frente a onde hoje é o Marco Zero, nesse ano televisão era um “bicho” raro, só havia lá pras bandas de Mossoró, o principal e único meio de informação e lazer era o rádio, tão popular como televisão é hoje. E foi Francisco Alfredo, mais conhecido por Chico Alfredo, a primeira pessoa que trouxe esse fascinante aparelho para Grossos. Conta-se que nessa, digamos, inauguração a modernidade tecnológica e, como se tratava de uma comunidade pequena, ou seja, ainda em formação, todo mundo ficou sabendo que Chico Alfredo tinha ido a Mossoró comprar esse aparelho, ora, teve gente que foi esperar ele passar na ponta da rua, isto é, na entrada de Grossos, na antiga rua da palha, hoje, Bairro São José, só pra dizer que foi o primeiro que viu, mesmo na caixa, não importava, seria o primeiro e pronto, vai se discutir com uma pessoa dessas? Só para efeito de registro, quero lembrar que nessa época, o cartão postal da entrada de Grossos, era um ponto muito negativo, isto é, o lixão da cidade. Chico Alfredo chegou pela tarde num transporte muito moderno, com cabine dupla, toda de madeira e carroceria de caminhão, coberta com ripa e lona, muito conhecido na época como misto, a essas alturas já tinham umas sessenta pessoas esperando para ver o tal “bicho” falar.

Ao chegar próximo a sua casa, teve de imediato um susto, pois não esperava aquela aglomeração toda em frente.

-- Meu Deus! Arrocha o passo motorista, parece que tão invadindo meu comércio.

O misto de Antonio Soares riscou na porta.

-- Que é que ta havendo aqui? Perguntou o dono do comércio ofegante descendo do transporte.

-- É nada não seu Chico Alfredo, só viemos ver esse negócio aí, que tão dizendo que passa as coisas.

-- Há, pois sim, tive foi um susto, pensei que tava havendo um saque na cidade.

Seu Chico foi entrando, olhou para trás:

-- Antonhe traga o aparelho pra dentro e vá chamar Chiquim pra ligar esse troço, porque eu estou muito cansado, por mim só ligaria mais tarde mas como tem muita gente querendo ver o bicho, é melhor ligar logo.

Alguns que estavam sentados pela calçada, se olharam:

-- O negócio é complicado mesmo viu, nem ele que comprou sabe ligar!

Quarenta minutos depois, chega Chiquim, a essas alturas se achando o homem mais importante da cidade:

-- Pera aí homi, saia do meio pra eu passar.

Como em todo canto tem seus babões:

-- Pense num cara inteligente, saber ligar um bicho desses, como é mesmo o nome, hein?

-- Sei lá, visão, trivão, bisão, bivão, alguma coisa assim.

Quando Chiquim começou a tirar o aparelho da caixa - lembrando que nessa época a TV já vinha com uma mesinha acoplada ao aparelho - já tinha mais de cem pessoas em frente ao comercio. De olho no manual, Chiquim vai montando aos poucos peça a peça, primeiro a antena, o cano já estava comprado, parafusa a antena no cano, levanta, parafusa o cano em um suporte chumbado na parede, puxa o fio preto, liga na televisão, liga a televisão na tomada, nessa época só tinha energia na cidade, na zona rural ainda era um sonho - e mesmo assim, não se podia falar em chuva, pois logo que chovia, faltava energia – nessas alturas Grossos já estava em peso de frente ao comércio, liga a TV, todos atentos, quase a invadir a mercearia, que nessa época, era conhecida por bodega, uns em pé na porta, outros de cócoras olhando por baixo das pernas dos que estavam em pé, os meninos nos ombros de seus respectivos pais, como a casa de Chico Alfredo era de frente pro sol – quase em frente onde é hoje o colégio municipal, inclusive quem mora lá hoje é Manel Cassopa – fazia um calor enorme.

-- Peraí Chiquin, ponha esse aparelho pra fora, na calçada, pra todos poderem ver!

A calçada de imediato ficou cercada, se alguém olhasse de longe diria até que estava havendo ali uma rinha.

-- Não, assim não, não precisa ficar em cima da TV, basta ficar embaixo da calçada que da pra todo mundo ver. Chico Alfredo, já perdendo a paciência, falou pra um garoto que, provavelmente, tinha um sonho, tocar a TV.

Liga a TV, chiii, uma chiadeira dos diabos.

Um rapaz do Bairro dos Coqueiros, um pouco distante pergunta:

-- Ta passando o que?

-- Parece que um monte de abelhinhas!

-- Pois diga, esperar esse tempo todinho pra ver um bocado de abelha, se soubesse que era assim, tinha ido logo pra serra, lá tem e tem uma coisa, é das grandes.

Lá, junto a TV, ta Chiquim, com a camisa pregada no corpo de tanto suar.

-- Alguém, vá lá onde ta o cano e gire, aponte a antena pra Areia Branca!

Dois garotos correram para o beco, onde ficava o cano da antena, quase se abufelando:

-- Eu giro. Eu giro.

-- Não, eu giro, pode vocês não saberem. Um senhor tomou a vez.

-- Aaaah, quem é que não sabe girar um cano? Um rapaz reclamou indignado.

-- Viraram para Areia Branca? Chiquim perguntou aos gritos.

-- Já, ta bom? O senhor respondeu com o mesmo tom.

A televisão continuava com o chiii.

-- Vire pras bandas do Caenga, pra ver.

-- Prooonto.

Chiii...

-- Vire pras bandas de Mossoró.

-- Prooonto

Chiii...

-- Vire agora pras banda do Ceará.

-- Heee...

A turba toda gritou.

Uma senhora, muito espantada com aquela zoeira toda, saiu de dentro da casa vizinha enrolada em uma toalha, devia estar tomando banho com um casal de crianças, pois os inocentes estavam ainda nus e molhados, saíram as pressas para ver o que estava acontecendo na rua.

-- Que alvoroço é esse hein?

-- É alvoroço não dona, é a tal da televisão, ta vendo não?

-- Sim, então isso é a televisão.

-- Mas a imagem é ruim assim?

-- É, mas tão dizendo que vai melhorar, falta só comprar uma peça.

-- Que peça é essa homi?

-- Um tal de Amplimatic.

A televisão estava ligada, mas além do som ser muito ruim, junto com o murmúrio da população, não se entendia nada. De repente um grupo que estava do lado direito da calçada, faz um assombro e é gente pra todo lado.

-- Que foi isso?

-- Hora que foi isso, seu Chico Alfredo, foi só uma bufa que soltaram ali.

-- Haaa, vão pro inferno, vocês lá querem assistir TV, vamos Chiquim, vamos guardar a TV.

A multidão que muito esperou e já muito decepcionada, ao retirar-se começou a vaiar e foi tanta vai que de longe se ouvia, foi apupo pra toda a história, nunca em Grossos houve tanta troça como naquele dia.

Depois desse evento, essa televisão fez muita gente feliz, foi nela que toda cidade de Grossos assistiu o Brasil ser tricampeão na Copa do México. Passados mais dois anos, precisamente em 1972, a segunda TV que chegou aqui, foi comprada pelo glorioso Raimundo Pereira, onde ele e Chico Alfredo dividiram as atenções da população na Copa de 74, depois foi a vez de Gerardo Ferreira, pai do professor Stefeson, comprar a terceira TV, daí por diante vieram outras e mais outras, hoje a TV é um aparelho tão comum, que já tem casas que tem uma em cada quarto, arrisco-me a dizer que TV hoje é mais popular que o rádio naquela época.

Ronaldo Josino

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